(Conjunto de fotografias e texto usados para concorrer ao concurso Novos Talentos Fnac 2019)
Sinopse
Após ver o documentário Auto Rádio, sobre digressão de Benjamim pelo país, “engravidei de fora”, como disse António Lobo Antunes numa entrevista sobre o livro “Eu hei-de amar uma pedra”. Com a música “O Quinito foi para a Guiné”, achei que ainda havia algo mais a fazer pelas pessoas que foram obrigadas a sofrer com a guerra e decidi fotografar e falar com ex-combatentes da aldeia onde nasci e vivi até aos 18 anos.
Aos dezoito anos vim para o Porto. Os ex-combatentes, muitos deles com mais um ou dois anos, foram tentar sobreviver nas colónias portuguesas da altura.
Vera Cruz foi um paquete português que teve uma vida parecida com a dos jovens que nasceram na mesma altura. Nasceram para ter uma vida controlada pelo estado e acabaram na guerra colonial só porque alguém decidiu que assim deveria ser. Antes da guerra, fez a “Rota do Ouro e Prata”, viajou entre Lisboa e a América Central e a partir de 1956 começou a servir na Carreira de África. Com o início da Guerra Colonial Portuguesa, foi um dos escolhidos para fazer o transporte de milhares de militares. Foi o barco que fez mais viagens com este propósito. Em 1972 foi atracado em Lisboa e no ano seguinte foi desmantelado porque já não servia. Como foi dito anteriormente, nada de muito diferente em relação a um jovem nascido na mesma altura.
Quando comprei uma máquina fotográfica em segunda mão no ano passado, interessava-me a natureza e concertos de música ao vivo. Para mim, a fotografia era um registo de determinado momento que não fosse controlado por mim. Meses mais tarde, soube do concurso da FNAC e comecei a estar mais atento ao que acontecia à minha volta com o objetico de encontrar algo que eu achasse que tinha interesse. Música e natureza não eram temas que queria, apesar de me interessar muito por eles, contudo, foi a música que me trouxe a este assunto.
Já tinha ouvido falar no documentário Auto Rádio, sobre a longa digressão de Benjamim pelo país e acabei por vê-lo no RTP Play. Estava a vê-lo e a dada altura começaram a falar do Quinito, um ex-combatente que esteve na Guiné e sobre o qual o Benjamim fez uma música. E esta música chamou-me bastante a atenção. Tudo me chamava a atenção nesta parte do documentário.
“…mas há temáticas que não são abordadas por uma nova geração. O amor, enfim, é vulgar existirem canções de amor em discos pop/rock cantado em português. A Guerra Colonial não.
…Por incrível que pareça, como é que é possível que um episódio que fez parte da nossa história, da nossa vida, um dos episódios mais marcantes da história portuguesa dos últimos 50 anos ter tão pouca expressão na música popular portuguesa elétrica. Parece que foi cantada e depois, no pós 25 de Abril, houve um encerramento.”
E eu andei com estas palavras do Henrique Amaro e esta música na cabeça durante uns dias. O tema tinha acabado de me escolher. Cheguei à conclusão que iria fotografar e falar com pessoas da aldeia onde eu nasci que sofreram e sofrem por causa da Guerra Colonial Portuguesa.
Ainda só tinha falado com duas pessoas e percebi logo que todas elas iriam estar extremamente marcadas. Limitei-me a ouvir o que elas tinham para me dize:
“Fui para Angola com quatro meses de tropa. Eu não sabia nada. Era como quem ia para o matadouro.”
“Após a explosão, olhei para cima e estava a cabeça do alferes presa em dois galhos”, disse-me, enquanto simulava com dois dedos e o seu próprio pescoço aquilo de que tinha memória.
“Morreu um companheiro ao meu lado que me pediu para tomar conta da família”
“Depois de voltar foi o mais difícil”
“Muitos caixões só traziam o nome e algumas pedras dentro para fazer peso”
“Tinha medo.”
“Fui e vim no Vera Cruz apinhado de gente.”
São várias as frases que apontei e que me fizeram perceber a dimensão de tudo isto. Há uma história que me marcou particularmente.
“Tínhamos saído muito cedo ao encontro de outro grupo de militares portugueses. Quando já estávamos próximos, ouviu-se um grande estrondo. Foi uma mina, novamente. Quando chegamos lá estava o Manel da Cantina encostado a uma árvore, com uma perna toda desfeita a dizer que ia morrer. Nunca mais me esqueço. Eram 8h20min e eu pedi ajuda pelo rádio. Comecei a limpar o terreno para o helicóptero conseguir aterrar. Fartamo-nos de esperar e só chegou ajuda às 16h20min. Foram oito horas de espera. Quando vi o helicóptero, comecei a fazer sinais com os braços e a resposta que tive do piloto, achando ele que não tinha espaço para pousar, foi um manguito. Passadas oito horas de sofrimento do Manel da Cantina, ainda recebemos um manguito e foi preciso uma discussão para o piloto decidir aterrar.”
Nós esquecemo-nos que isto aconteceu há pouco mais de 45 anos. Muitos deles iam para lá com 19 ou 20, tal como indicam os nomes das fotografias. Andamos todos a fazer manguitos a pessoas que foram obrigadas a lutar por uma coisa que nem sequer era nossa. São pessoas que falam da morte de uma maneira diferente. Era comum morrer. Os conceitos de morte e de vida na guerra são completamente distintos daqueles que nós temos.
“Tempos do caralho, puta que pariu”, terminou assim a última conversa que tive.